No dia 03 de outubro, a Igreja no Brasil comemora a Memória dos Protomártires do Brasil: os Santos André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro, presbíteros, Mateus Moreira e outros 27 companheiros leigos, Mártires, brutalmente trucidados pelos invasores holandeses e índios a eles associados em 1645.
Martírio de Cunhaú
Dia 15 de julho chegou a Cunhaú Jacó Rabe, trazendo consigo, como sempre, seus amigos e liderados, os ferozes tapuias, e, além deles, alguns potiguares com o chefe Jerera e soldados holandeses. Jacó Rabe era conhecido por seus saques e desmandos, feitos com a conivência dos holandeses, deixando um rastro de destruição por onde passava. Dizendo-se em missão oficial pelo Supremo Conselho Holandês do Recife, convoca a população para ouvir as ordens do Conselho após a missa dominical no dia seguinte. Sua simples presença deixou todos tensos e temerosos.
Uma chuva torrencial na manhã de domingo, dia 16, alagando sobremaneira os caminhos da região, impediu que o número de pessoas a comparecer na missa fosse maior. Foi uma chuva providencial.
Pelo receio de Rabe, alguns esperaram na casa de engenho. Os fiéis chegaram, em grupos de famílias, para cumprir o preceito dominical, e Pe. André de Soveral iniciou a missa…
Os primeiros ataques ao venerando sacerdote, Pe. André de Soveral, partiram dos tapuias. O Padre, porém, falando a língua indígena na qual era bem versado, exortou-os a não tocar na sua pessoa ou nas imagens e objetos do altar, sob pena de ficarem tolhidas as mãos e as partes do corpo que o fizessem. Os tapuias recuaram receosos. Mas os potiguares não deram importância às palavras do sacerdote, arremetendo contra o ministro de Deus e “fazendo-o em pedaços”. O autor da façanha foi o principal dos potiguares, Jerera, que, empunhando uma adaga, feriu de morte o Pe. André”( PEREIRA, F. de Assis. Protomártires do Brasil, p.16s).
“Após a elevação da hóstia e do cálice, erguendo o Corpo do Senhor para a adoração dos presentes, a um sinal de Jacó Rabe, foram fechadas todas as portas da igreja e se deu início à terrível carnificina”. Foram cenas de grande atrocidade: os fiéis em oração, tomados de surpresa e completamente indefesos, foram covardemente atacados e mortos pelos flamengos com a ajuda dos tapuias e dos potiguares. Ao perceber que iam ser mesmo sacrificados, os fiéis não se rebelaram. Ao contrário, “entre ânsias se confessaram ao sumo sacerdote Jesus Cristo Senhor Nosso, pedindo-lhe cada qual, com grande contrição, perdão de suas culpas”, enquanto o Pe. André estava “exortando-os a bem morrer, rezando apressadamente o ofício da agonia”.
Os que haviam se refugiado na casa do senhor de engenho tiveram a mesma sorte. Após a igreja, esta foi invadida. Três conseguiram fugir escapando pelos telhados. Os outros tentaram se defender como puderam, mas também foram mortos.
A disposição dos fiéis à hora da morte era a de verdadeiros mártires, ou seja, aceitando voluntariamente o martírio por amor a Cristo. Os assassinos agiam em nome de um governo que hostilizava abertamente a Igreja Católica, a religião do governo português, do qual eram adversários. As vítimas tinham plena consciência disso.
De toda essa numerosa multidão de mártires, cerca de 70 pessoas, apenas duas foram identificadas, e, por isso, beatificadas (e agora, recentemente, canonizadas): Pe. André de Soveral e Domingos de Carvalho.
Martírio de Uruaçu
A notícia do massacre de Cunhaú espalhou-se por todo o Rio Grande e capitanias vizinhas, deixando a população aterrorizada, temendo novos ataques dos tapuias e potiguares, instigados pelos holandeses. Mesmo suspeitando dessa conivência do governo holandês, alguns moradores influentes pediram asilo ao comandante da Fortaleza dos Reis Magos. Assim, foram recebidos como hóspedes o vigário Pe. Ambrósio Francisco Ferro, Antônio Vilela, o Moço, Francisco de Bastos, Diogo Pereira e José do Porto.
Os outros moradores (a grande maioria), não podendo ficar no Forte, assumiram a sua própria defesa, construindo uma fortificação na pequena cidade de Potengi, a 25 quilômetros da Fortaleza.
Enquanto isso, Jacó Rabe prosseguia com seus crimes. Após passar por várias localidades do Rio Grande e da Paraíba, chegou a setembro à Casa Forte do francês João Lostau Navarro, a poucos quilômetros de Natal. Vários moradores foram mortos e o proprietário, por ser estrangeiro, foi levado ao Forte dos Reis Magos. No Forte encontrou-se com os nossos conhecidos hóspedes e outro prisioneiro, Antônio Vilela Cid. Este era acusado de cumplicidade na morte de um holandês e de fazer parte de uma conspiração pela expulsão dos holandeses.
Rabe foi então à Potengi, e encontrou heroica resistência armada dos fortificados. Como sabiam que ele mandara matar os inocentes de Cunhaú, resistiram o mais que puderam, por 16 dias, até que chegaram duas peças de artilharia vindas da Fortaleza dos Reis Magos. Não tinham como enfrentá-las.
Depuseram as armas e entregaram-se nas mãos Deus. Cinco reféns foram levados à Fortaleza: Estevão Machado de Miranda, Francisco Mendes Pereira, Vicente de Souza Pereira, João da Silveira e Simão Correia.
Desse modo, os moradores do Rio Grande ficaram em dois grupos: doze na fortaleza e o restante sob custódia em Potengi.
Dia 2 de outubro chegaram ordens de Recife mandando matar todos os moradores, o que foi feito no dia seguinte, três de outubro. Os holandeses decidiram eliminar primeiro os 12 da Fortaleza, por serem pessoas influentes, servindo de exemplo: o vigário, um escabino, um rico proprietário. Foram embarcados e levados rio acima para o porto de Uruaçu. Lá os esperava o chefe indígena potiguar Antônio Paraopaba e um pelotão armado de duzentos índios seus comandados. Este chefe fora educado na Holanda e convertido à religião calvinista, da qual era fanático defensor. Mais tarde os holandeses o fizeram regedor dos índios da Capitania do Rio Grande.
Logo que chegaram, os flamengos ordenaram aos doze que se despissem e ajoelhassem. Chamando os índios, que estavam emboscados, estes cercaram os pobres indefesos e deram início à requintada carnificina que se seguiu.
Mons. Assis, o postulador da causa desses nossos queridos beatos, por dever de ofício e necessária precisão histórica, narra os tormentos e crueldades praticados tanto por índios como por holandeses (PEREIRA, F. de Assis. Protomártires do Brasil, p. 36-44; também p. 109-114)…
Impossível ler aquelas páginas e não chorar! Santo Deus! Como resistiram a tanta crueldade? Só mesmo a força da graça divina, que se manifesta na fraqueza humana, pode explicar o heroísmo desse transe! Antes de receberem a palma do martírio na Glória do céu, o mínimo que lhes aconteceu foi terem olhos, orelhas e línguas arrancadas, órgãos sexuais cortados e colocados em suas bocas…ainda vivos! Os que não morreram por essas e outras crueldades, começaram a ter os membros cortados, e, dessa forma, entregaram a alma a Deus. Depois de mortos, a barbárie continuou, e seus corpos foram feitos em pedaços… Em contraste a essa violência, temos a atitude serena e profundamente cristã das vítimas. Além disso, importantíssimo para a caracterização do martírio pela fé, foi justamente a presença de um pastor protestante calvinista, que tentou fazê-los abjurar a fé católica e converterem-se à religião dos flamengos. Confessaram a alta voz que morriam na verdadeira fé:
“Pedindo todos a Deus que tivesse deles misericórdia, e lhes perdoasse suas culpas e pecados, protestando que morriam firmes na santa fé católica crendo o que cria a santa madre Igreja de Roma” (SANTIAGO, D. L.. História da Guerra de Pernambuco, p. 346, citado em: PEREIRA, F. de Assis. Protomártires do Brasil, p. 38)
É importante ser ressaltado isso, pois não era simplesmente uma perseguição política. Era claro para as vítimas que ceder aos invasores era ceder aos hereges calvinistas; era trair ao Rei, o soberano português, e à Religião Católica. Era esse o sentir das pessoas então; vencer e expulsar os invasores era defender a pátria e vencer para Deus e a verdadeira fé. Nas atrocidades do martírio também se manifesta o ódio à fé católica por parte dos assassinos, pela forma como foi tratado Pe. Ambrósio: por ser sacerdote, estando ainda ele vivo, foi mais duramente torturado. Quanto aos outros moradores que estavam presos em Potengi, também eles não tinham mais ilusões de que sobreviveriam, e teriam o mesmo fim que os inocentes fiéis de Cunhaú.
Aguardavam o martírio em clima de grande religiosidade. Dentro da fortificação, que se tornou cadeia, eram realizadas orações, procissões, jejuns e penitências fortíssimas. As penitências foram tantas que seus corpos depois as denunciavam antes de serem sepultados.
Embora somente os homens é que deveriam ser levados para a morte, sabe-se que algumas mulheres com seus filhos acompanharam os chefes de família e foram também sacrificados. Quando os soldados holandeses vieram buscá-los, sabiam que iam para o suplício:
“Despediram-se os miseráveis de suas mulheres e filhos com muitas lágrimas, pedindo-lhes com muita eficácia que, pois iam morrer por seu Deus e inocentes, que lhes encomendassem as almas a seu Criador, e a quem pelo caminho foram pedindo perdão de seus pecados, dando-lhe muitas graças. Mui conformes por morrerem daquela sorte, e, antes de serem chegados ao sítio, teatro de crueldade e tirania jamais vista, foram cercados pelos índios, e em chegando viram os cadáveres de seus companheiros e vizinhos que ainda palpitavam com as feridas, com cuja vista não desmaiaram, antes deram a Deus muitas graças consolando-se uns aos outros, e protestando que morriam firmes na fé católica romana.”. (PEREIRA, F. de Assis. Protomártires do Brasil, p. 40s)
Merece destaque também o martírio do leigo Mateus Moreira que teve o coração arrancado do peito pelas costas. Quando o carrasco arrancou seu coração, milagrosamente ainda teve forças para bradar em alta voz: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento”. Foi proclamado Padroeiro dos Ministros Extraordinários da Sagrada Comunhão.
Repetiram-se então as piores atrocidades e barbáries, que os próprios cronistas da época sentiam pejo em contá-las, porque atentavam às leis da moral e modéstia. Em Uruaçu foram mortos os principais moradores de Natal, que por medo dos índios e holandeses tinham se refugiado na Fortaleza dos Reis Magos e na fortificação de Potengi. Calcula-se em torno de 80 pessoas.